
O drama PaixãoSufocante, que está na Netflix, é inspirado na história da mergulhadora francesa Audrey Mestre e muito embora várias passagens serem reais, o desfecho do filme, assim com o caso real, permanece um mistério.
Paixão Sufocante vai além de um "filme de esporte"... Ele trata de relacionamento tóxico e tem um desfecho chocante.
O acidente real data de 12 outubro 2002.
Audrey foi uma das amigas que perdi no mergulho. Sempre lembro dos momentos que passamos juntas, muitas cenas engraçadas e outras estressantes por causa exatamente de atritos com o marido Pipin.
Juntamente com Audrey conquistamos o recorde mundial de No Limits Tandem atingindo a profundidade de –91metros de profundidade. Também fui Juiza Internacional do Recorde Mundial que ela realizou no ano seguinte, no ano de 2001, no qual atingiu -131metros.
Audrey era francesa, nascida no norte da Franca, filha única, tinha agora 28 anos. Seu pai era pescador sub no mar mediterrâneo, ela começou a praticar mergulho autônomo aos 13 anos, mudou-se para o México na juventude aonde cursou biologia marinha. Em 1995, pelos estudos e pela pratica do mergulho o destino a colocou frente Pipin Ferreras, que estava organizando um de seus recordes em Cabo São Lucas – Mexico. Ela fez estudos sobre a capacidade pulmonar de Pipin durante 8 meses, querendo provar o fenômeno do blood shift a alta pressão.
Lembro-me de Audrey contando com orgulho de quando encerrou o trabalho apresentando-o. Quando Pipin retornou ao México ela teve oportunidade de mergulhar com ele e acabou tornando-se um de seus mergulhadores de segurança, era o começo... Logo em seguida, com Pipin de treinador, ela veio a fazer o recorde francês de No Limits –80m e o recorde mundial de No Limits feminino atingindo –131m, do qual tenho orgulho de ter sido convocada como Juíza Internacional da AIDA.
Entre os treinos Audrey trabalhava também como instrutora de mergulho livre, dava aula para crianças carentes, mergulhava com seres marinhos e fazia matérias sobre eles. Ela adorava estes trabalhos, mais do que fazer um recorde. Audrey também não gostava de praticar pescasub, uma vez acompanhamos uma saída de pesca para as Bahamas e nos divertíamos vendo quando Pipin errava o alvo... ou não via o peixe. Parecíamos duas crianças.
A notícia de que a americana Tanya Streeter quebrou a marca de Audrey Mestre realizando –160metros causou grande agitação em Pipin... Lançando Audrey à profundidades maiores.
Audrey desceu com uma máquina de quase 100kg de peso para levá-la ao fundo, uma velocidade fenomenal! Demorou mais de 9 minutos para que ela chegasse a superficie depois de alcancar os –171m. A mesma marca que ela já havia feito em treinamento.
Uns dizem que não havia ar na garrafa que iria inflar o balão e levá-la a surperficie, mas na verdade foram várias falhas de acordo com relatos pinçados de artigos em canais que tratam sobre mergulho, um deles o relatório da IAFD publicado no renomado website “Deeper Blue”:
“Descida: 1 min 42 segundos contagem regressiva de -5 a zero minutos (cronometrado por Carlos Serra).
Zero: Audrey estava focada, sem indicações de estresse ou desconforto excessivo.
Tempo: 0:04 (Velocidade do sled =1,50 m/s)
Tempo: 0:31 (profundidade 50 metros atinge a Velocidade máxima = 1,90 m/s)
Tempo: 1:00 (profundidade 100 metros Velocidade= 1,75 m/s)
Tempo: 1:34 (profundidade 159 metros V=1,62 m/seg, Pascal (o último mergulhador de segurança) bate em seu tanque como sinal de aproximação)
(problema no cabo 'impulso' de origem desconhecida; inicialmente acreditado (falsamente) para ser impacto do mergulhador)
(Ligeiro aumento em V ~+0,30 m/s, talvez devido à mudança de posição do trenó ou do corpo)
Tempo 1:42 impulso grande de cabo como trenó chegando ao fundo.
Subida: de 1min 43 a 8 min 38 seg.
Observações visuais de Audrey indicaram ações corporais normais, sem angústia.
Tempo 1:59: profundidade 169 metros, aumento para cima V ~ 0,30 m/seg normal para subida inicial da profundidade.
Ondas de superfície e movimentos do barco visíveis, no fundo, Audrey não solicita assistência.
Tempo 2:12 (profundidade 165m, Velocidade= 0, ondas claramente visíveis no registro indicando a interação do cabo. A subida é interrompida, Pascal tenta adicionar gás ao balão de subida. Audrey não pede ajuda, parece calma.
Tempo 2:42 (profundidade 164m, V = 0,6 começa a subir uniformemente.
Pascal observa Audrey subindo acima dele por 2-3 segundos.
Pascal retoma sua subida; Audrey subiu acima dele com o balão de subida.
Tempo 3:00 profundidade 153m, desacelera abruptamente para Velocidade = 0,0 por ~ 2 segundos, depois retoma Velocidade = 0,8m/s)
('Parada' do balão de subida no cabo e em vários outros locais durante a subida)
Tempo 3:30 profundidade 136m, Velocidade= 0,8m/s velocidade razoavelmente constante durante esta porção de subida.
Tempo 3:50 profundidade 120m, Velocidade =0,0 a subida diminui e Audrey começa a cair, já estava apagada.
Tempo 4:05 profundidade 124m, Velocidade =-0,3m/s descendo quando Pascal atinge Audrey 15 segundos depois de inconsciente)
Hora 6:00 profundidade 91m V = 0,0 não é mais seguro para Pascal subir, prepara-se para transferir o corpo de Audrey.
Hora 7:03 profundidade 89m, V = 0,5 ascendente Audrey transferida para Pipin para subida final.
Hora 8:38 (profundidade 0, V = 0,0 superfície atingida)
Hora 9:39 Audrey foi retirada da água e colocada a bombordo do catamarã.
Tempo estimado de transferência de barco pequeno para a praia 5 a 6 minutos.
Audrey era uma atleta bem treinada. Os especialistas chegaram às seguintes conclusões sobre o acidente:
1) O balão de subida forneceu elevação inadequada (muito menos que o normal) principalmente na parte mais profunda.
2) Houve tensão inadequada no cabo (peso no fundo ~ 15 kg + peso do cabo ~ 23 kg)
3) As asas (400 cm2) na câmera do trenó causaram uma força inesperada (~10kg lateralmente) no cabo.
4) A inserção do rolamento superior do saco de subida foi marginal (leve dano), o que aumentou o arrasto.
5) Presença de partes danificadas no cabo guia de teflon.
· O Cabo era de teflon e o balão corria através de um tubo por este cabo, o qual parecia estar danificado e provocando as paradas abruptas na subidas, além do atraso para inflar o balão no fundo, o qual parecia ter sido provocado por falta de ar no cilindro.
6) Uma tentativa de adicionar gás ao saco de subida foi feita por Pascal Bernabe.
7) A subida foi dificultada por instabilidades hidrodinâmicas em baixas velocidades. A subida foi não vertical, o que causou a 'frenagem' da balão de subida no cabo solto (em intervalos regulares de ondas de superfície).”
Além deste relatório, restaram muitas dúvidas e grande inconformismo quando se assiste ao filme ou mesmo às imagens reais da tragédia. Por isto seguem algumas outras considerações de minha parte.
Foi muito tempo sem ventilar, em parada cardíaca. O fato de desmaiar nos -120metros significa que já estava com contrações diafragmáticas em grande profundidade (quando temos como regra de segurança evitar contrações abaixo dos -40metros, por ser considerado um grande risco de lung squeeze (compressão dos pulmões com rompimentos de alvéolos - fatal).
Quando juízes oficiais são chamados para um evento, uma das tarefas é checar a segurança da tentativa de recorde. Na falta de requisitos claros definidos pela AIDA (Associação Internacional para o Desenvolvimento da Apneia) os juízes podem se negar a julgar o evento (o que cancelaria a tentativa). Entretanto Pipin criou uma outra organização para julgar, chamando pessoas da própria equipe, como Carlos Serra, que após o acidente escreveu um livro, muito esclarecedor, à respeito:
A roupa de Neoprene de Audrey poderia ter uma espessura maior, auxiliando um pouco mais na flutuação.
Além disto, poderia transportar um segundo sistema de segurança, como uma bolsa de inflar com cartucho de CO2 (equipamento já conhecido dos mergulhadores de profundidade naquela época).
Quando realizei o recorde mundial de -121metros, juntamente como Patrick Musimu, decidimos levar um cilindro menor, preso na lateral da perna, já acoplado a um liftbag e ficava enrolado na cintura.
A própria atleta deveria checar todo o equipamento de mergulho.
Não haviam mergulhadores suficientes na água. Dos -171m aos 120m, Audrey não pode contar com nenhuma ajuda extra, como um outro lift bag pelo menos. Foi entre 120metros até 90metros o momento mais crítico.
Não consegui constatar, na verdade, nenhum plano eficiente de emergência... Sequer um dos mais simples, muito utilizado, como o timming (controle do tempo do mergulho) com o acionamento de um sistema que trouxesse todo o cabo com a mergulhadora para a superfície, chamado de contrapeso, ou mesmo um motor para recolher todo o cabo, trazendo-a rapidamente (desde que houvesse também um "safety lanyard": um cabo de segurança de aço que utilizamos para ficarmos conectados ao cabo guia).
De fora da água outras falhas, uma plataforma alta dificultava o resgate, não havia médico (pelas narrativas era um dentista que estava disponível).
Quando o barco chega na costa, não é visto ambulância, ou serviço especializado, como paramédicos.
O acidente foi um choque para o mundo do mergulho... Para mim ainda mais, perdi uma amiga, lembro-me de sua vitalidade, de sua energia, sua força, tudo tinha se acabado por causa de um recorde e mistérios que não foram até hoje desvendados.
Assistir ao filme é reviver parte desta triste história. Prefiro lembrar das marcas que conquistamos e dos momentos bonitos e divertidos que vivenciei ao seu lado.
A bientôt mon amie.
Assista ao documentário completo na ESPN https://youtu.be/nXvqrzPVaeI?si=qJum8L1e1Ogs6g2p
Relato emocionante e especial. Obrigada pela partilha.
Parabéns pelo relato. Vi o filme e acompanhei os fatos na época, realmente foi algo chocante.